Noivas abrem processo e PI registra 1º casamento homoafetivo religioso
Plataforma da Central de Registro Civil do Estado não permitia habilitação do casamento religioso, com efeito civil, para casais do mesmo sexo
Há 10 anos, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu a união homoafetiva no Brasil. Desde então, casais do mesmo sexo passaram a ter direitos equivalentes aos heterossexuais. Tudo isso na teoria, porque na prática não faltam histórias de preconceito, seja velado ou explícito. É que o problema, estrutural, vai muito além de qualquer entrave jurídico. No país com a péssima fama de ser o “campeão mundial de crime contras as minorias sexuais”, onde um LGBT morre a cada 36 horas, não é de se estranhar que tudo funcione a passos lentos.
Em Teresina (PI), duas noivas tiveram que entrar na justiça para conseguir casar no religioso com efeito civil. É que o sistema da Central de Registro Civil do Estado estava desatualizado e não oferecia essa opção até o início do ano. A situação só mudou depois que a engenheira agrônoma Karinne Silva do Nascimento, 35, e a administradora Geysa Karla Alexandrina de Souza, 31, abriram um processo administrativo na Vice-Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Piauí. Elas pediram a adequação da plataforma utilizada nos cartórios para que a opção “casamento religioso com efeito civil”, antes restrita a casais heterossexuais, fosse estendida ao público homossexual.
Dois meses depois, no dia 15 de dezembro de 2020, decisão judicial determinou a mudança no sistema, que só foi alterado, na prática, em 08 de fevereiro de 2021, mesmo mês em que elas, finalmente, puderam dizer “sim” do jeito que sonharam. “Somos católicas, acreditamos em Deus e queríamos ser abençoadas por ele nesse momento especial”, conta Karinne, ao comemorar o que considera um marco histórico.
“Casamos no dia 19/03/2021, com o coração cheio de alegria por sermos o primeiro casal homoafetivo do Estado Piauí a casar no religioso com efeito civil”.
Cerimônias Ecumênicas — O casamento de Karinne e Geysa foi realizado no Sítio Ladeira do Mirusco, em Teresina. Quem conduziu a cerimônia foi a celebrante de casamento e ministra religiosa, Jane Pimentel, que entende bem a dificuldade de casais homoafetivos expressarem a religiosidade no momento da união.
“Celebrante nenhum ou ministro religioso quer fazer, de forma alguma… Padre, pastor, não querem fazer […], mas eu sempre falei que elas tinham o direito e que a minha instituição não colocava empecilhos. Por que o cartório colocaria? A gente veio exatamente para amenizar esses problemas, diminuir a angústia. Fazemos tudo aquilo que o casal deseja, se hétero ou homoafetivo tanto faz. A gente celebra o amor”, explica.
Por razões legais, Karinne e Geysa se declararam católicas, mas para o momento da cerimônia, as noivas escolheram duas celebrações ecumênicas, a das velas — ou luzes — e a da árvore, ambas voltadas para o cuidado com o matrimônio. No discurso, a pedido do casal, a celebrante não mencionou a igreja explicitamente. “Não falamos especificamente de uma religião, mas falamos de muito amor, cuidado, respeito, amor incondicional, independente de sexo, raça, cor”, explica.
Jane Pimentel afirma que, apesar de necessitar da Igreja Católica para formalizar o casamento religioso com efeito civil, essa é apenas uma questão burocrática, mas na celebração não há necessidade de fazer algo voltado à religiosidade, valendo, portanto, a escolha do casal. “É o diferencial de outros celebrantes. Se for o padre, tem que ser uma cerimônia católica. Se for pastor, tem que ser evangélica”, compara ao comentar que “o amor independe de uma igreja”.
Luta na justiça — Entre a abertura e conclusão do processo administrativo, as noivas aguardaram 5 meses. “Marcamos a primeira data para abril de 2020, mas veio a pandemia e deu uma pausa em todos os casamentos. Nesse meio tempo conhecemos uma celebrante que disse que teríamos, sim, o direito de casar no religioso com efeito civil, então pesquisamos e fomos até o cartório, mas o sistema não permitia essa habilitação, somente o civil. O tabelião propôs que entrássemos com processo administrativo e, a partir daí, começou a luta para mudar o sistema dos cartórios do nosso Estado”.
A busca pela garantia do direito previsto em lei, começou, de fato, com o apoio do tabelião do 1º Cartório de Registro Civil de Teresina, Walter Freire Capiberibe Neto. Em requerimento encaminhado ao desembargador e vice-corregedor do TJ/PI, Oton Mário José Lustosa Torres, e à juíza corregedora da comarca do município, Celina Maria Freitas de Sousa Moura, ele destacou que, no sistema da Central de Registro Civil do PI, o tipo de casamento solicitado por Karinne e Geysa já se encontrava preenchido como civil, sem a possibilidade de alteração para o religioso com efeitos civis.
No texto, argumenta: (…) Nos últimos anos tivemos o reconhecimento da possibilidade de casamento por pessoas do mesmo gênero, tendo, no entanto, os provimentos de regência tratado genericamente da modalidade civil, sem adentrar especificamente no mérito do casamento religioso com efeitos civis. Salvo melhor juízo, ao meu entender, o maior óbice para tal tipo de casamento para pessoas do mesmo sexo é a questão de determinadas religiões não terem líderes religiosos que aceitem promover a dita celebração”.
Guerra Santa — Argumento pertinente. Em março, o Vaticano, com aval do papa Francisco, proibiu a bênção à união entre pessoas do mesmo sexo e chamou a homossexualidade de pecado. A decisão da CDF (Congregação para a Doutrina da Fé), um dos órgãos que estabelece diretrizes para os católicos, foi uma resposta às perguntas enviadas por paróquias que manifestaram o desejo de abençoar, como sinal de boas vindas, gays católicos, já que a igreja não permite o casamento homoafetivo. O órgão doutrinário sustenta que a medida “não se destina a ser uma forma injusta de discriminação, mas sim um lembrete da verdade do rito litúrgico”.
Mesmo sem poder oficializar a união em uma igreja, como fazem casais héteros e católicos, as noivas de Teresina não se incomodam com o posicionamento do Vaticano, tampouco reconhecem ou mencionam qualquer incoerência na escolha da religião, instituição milenar que sempre se posicionou contrária à comunidade LGBTQIA+. Para elas, a declaração do sumo pontífice, representante máximo da Igreja Católica, parece mais um detalhe.
Na interpretação de Geysa, por exemplo, a benção religiosa, com aval do papa, é dispensável.
“Fizemos questão de casar no religioso porque, antes de tudo, a gente acredita em Deus. E a declaração do Papa não me causou nenhum incômodo pois é Deus quem abençoa e eu acredito que Deus abençoa todos os seus filhos independente de qualquer coisa, porque Deus é amor e ele abençoa o amor verdadeiro, por isso acreditamos que eles no abençoa porque nosso amor é verdadeiro, puro, leve e feliz. A fé está em nossos corações e eu acredito que o Deus em que vive no meu coração não tem distinção entre gêneros, cor e raça”, defende.
Direitos Iguais — Na decisão do processo administrativo aberto pelo casal de Teresina, o desembargador Oton Mário José Lustosa Torres cita a Resolução 175/2013 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo.
“A Constituição Federal, ao proclamar princípios fundamentais, sobretudo os da igualdade e da dignidade da pessoa humana, veda qualquer tipo de discriminação, elevando o indivíduo como ente protegido pelo Estado. Em razão disso, não pode a lei ser interpretada de forma a restringir os direitos, e sim, para tutelar equitativamente todas as pessoas”, sustenta o magistrado.
O desembargador aponta, ainda, o artigo 516 do Código de Normas e de Registro do Estado do Piauí (Provimento nº 17/2013), que prevê a conversão deste tipo de união, além dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Por fim, determina a adequação da Central de Informações do Registro Civil a partir da exclusão da aba “homoafetivo”, tornando as opções “casamento civil”, “religioso com efeito civil” e “conversão de união estável em casamento”, comum a todos os casais, independente da orientação sexual.
Determina, ainda, que o conteúdo de toda a documentação necessária para dar entrada no casamento, como despachos, decisões, termos e certidões, deverá conter, sempre que possível, expressões genéricas que não façam referência ao sexo (gênero) das partes interessadas. Quando não for possível, a palavra deve ser escrita com sua flexão nos gêneros masculino e feminino.
Para as noivas, hoje oficialmente casadas no religioso e também no civil, ver essa mudança acontecer, mesmo que seja em um sistema, foi mais uma batalha vencida na luta contra a LGBTfobia.
“Estamos felizes de poder, de alguma maneira, proporcionar essa mesma felicidade a outros casais”, diz Karinne, que hoje comemora a sorte de um amor tranquilo, com reconhecimento legal e apoio dentro de casa. “Nossa história iniciou com uma grande amizade e com o tempo tornou-se amor. Foi difícil para ambas, principalmente para minha esposa, porque eu fui a primeira namorada dela e nossas famílias foram um pouco resistentes, mas hoje em dia nos aceitam e compreendem que o amor é livre”.
O Dois Iguais procurou a Vice-Corregedoria Geral da Justiça do Piauí para saber porque, até o início do ano, não havia opção de casamento religioso com efeito civil na plataforma do CRC-PI.
Em nota, a assessoria de comunicação do órgão informou que o sistema foi implantado em 2012, portanto, em data anterior à publicação da resolução 175/2013 do CNJ e do Provimento 17/2013, do Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça (Provimento 17/2013). Ressalta, ainda, que esses normativos não regulamentam o CRC-PI.
Segundo a assessoria, o caso de Karinne e Geysa foi o primeiro a tratar da demanda e “tão logo comunicada formalmente sobre a desatualização”, a Vice-Corregedoria determinou a atualização da plataforma”.